
"Ver é um ato de resistência cotidiana.
O mais fácil, sempre, é não ver. Ou enxergar apenas aquilo que nos dão para ver,
como se essa fosse toda a verdade. Existe aquilo que não vemos, mas gostaríamos de ter visto.
E existe aquilo que não vemos porque escolhemos não ver.
Como quando fechamos o vidro do carro para impedir o contato com as pessoas que nos pedem alguma coisa do lado de fora. E colocamos insulfilm nos vidros, quanto mais escuro melhor, para que nem mesmo elas possam nos ver.
É mais fácil quando aqueles que querem entrar não enxergam nosso rosto assustado, culpado ou com raiva. Nosso desamparo diante da dor do outro é oculto por camadas de insulfilm. E um pouco mais: a película que permite a nossa cegueira impede os que pertencem ao lado de fora de ver que não estamos vendo.
Nos iludimos que estamos protegidos, mas a escolha de não ver – assim como a de não ser visto – vai nos brutalizando. E logo nem precisamos mais da película sintética na janela. Porque um insulfilm orgânico já cobre nossos olhos, faz parte de nós. Não ligamos mais. Os que querem entrar já não importam, porque nos iludimos que são tão diferentes de nós, que temos a sorte de estar dentro, que não faz mais diferença.
Todos os genocídios da história foram cometidos por poucos, mas só puderam ser consumados porque muitos fingiram não ver. E fingiram com tanta ênfase que acabaram por acreditar que não viam.
Às vezes, contra todos os meus esforços, acontece comigo.
Sucumbo à banalidade, me distraio e permito que o insulfilm me cubra os olhos.
Iludo-me que estou vendo, mas não estou.
(...)
A verdade é que poucas realidades do mundo são tão fáceis de não ver como a das Áfricas todas. Porque a rigor nem mesmo a África existe. Como sabemos, o continente e cada país dele foram uma invenção riscada no papel pelos colonizadores, com as consequências mais devastadoras. Para a maioria de nós, que aqui está, nada mais distante de nós do que os africanos todos. Vez por outra acompanhamos seu sofrimento como se acontecesse com gente de outra espécie. Eles morrem todos os dias de guerra, de fome, de sede, de malária e de Aids.
E é como se seu sofrimento fosse um dado da natureza. É banal, é corriqueiro, deixamos de ver, não nos sentimos implicados, “a África é assim”. É mais assim ainda que as favelas que se multiplicam ao nosso redor.
Como podemos? Racionalmente, eu não aceito isso.
Mas a realidade, percebi, é que vivo como se aceitasse... lentamente comecei a abrir as pálpebras dos meus" dos meus Olhos!!!
Extraído coluna revista Época
jornalista: Eliane Brum
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